Carlos Eduardo Novaes – Meu Primeiro Assalto

NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas

Eu sabia que mais cedo ou mais tarde chegaria a minha vez. Existem coisas inevitáveis a um cidadão de classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro. Uma delas é pagar impostos. A outra é ser assaltado. Até que resisti muito. Conheço história de garotos que sofreram o primeiro assalto antes da primeira comunhão.
Vinha me preparando durante todos esses anos, com a disciplina de um maratonista, para enfrentar o primeiro assalto. O primeiro assalto é algo tão importante na vida das pessoas quanto o primeiro beijo ou o primeiro amor. Treinei duro, fazendo caras diante do espelho, decorando frases, aperfeiçoando a expressão corporal. Nas reuniões sociais, ouvia atentamente as narrativas dos assaltados. Às vezes, devo dizer, ficava meio deprimido porque todas as pessoas que conheço já tinham sido assaltadas, enquanto eu continuava circulando impunemente há mais de 40 anos pelas ruas e vielas da cidade. Por que essa discriminação?Tenho cara de quem ganha salário mínimo?
Enfim, aconteceu na porta da garagem do meu prédio. Sempre ouvi dizer, nas incontáveis histórias sobre assaltos a edifícios, que os ladrões são rapazes bronzeados, elegantes, terno e gravata(alguns de colete), bem falantes e desembaraçados como um vendedor de enciclopédias. Ao olhar para meu primeiro assaltante, confesso que senti uma pontinha de frustração. Era um tipo magro, abatido, com os dentes em péssimo estado e vestido como se fosse para um arraial de São João. Ainda por cima, era gago.
Devia ser oito e meia da noite quando cheguei com Eliane è porta da garagem. Saltei, toquei a campainha e voltei ao carro, aguardando o porteiro. Foi nesse instante que ele apareceu. Uma forte emoção me subiu pelo corpo. Tratava-se afinal de um momento ansiosamente esperado, por muitos e muitos anos. Aproximou-se da minha janela, exibiu seu 38 e anunciou:
– Isso é um… é um ass… ass… assss…
– Assalto? –antecipei-me, nervoso com aquele suspense.
– É isso aí! Va-vai pas… sando as jó-jó… jó-jó…
– Jó-jó? Não sei o que é… – fiz-me de desentendido, procurando ganhar tempo até a chegada do porteiro.
– Você sa… sa-sa … sa-sa…
– Sassaricando!? – lembrei-me dos meus tempos de jogar mímica.
Ele deu com o cano do revólver no meu ombro, irritado, mas sem nenhuma autoridade. Tinha um comportamento de amador. Eu estava mais preparado para ser assaltado do que ele para assaltar. Sem dúvida era um novato no ramo. Talvez estivéssemos participando, ambos, do primeiro assalto.
– Quero o ouro – disse, muito trêmulo.
– Tudo bem. Você terá… – procurei acalmá-lo. – Fique tranqüilo.
– Quem disse que não tô tranq… tranks… calmo?
Quando Eliane começou a tirar a pulseirinha, o porteiro abriu a porta da garagem com grande estardalhaço (a porta está meio empenada, raspando no chão). O assaltante meteu o revólver na cintura e partiu para cima do porteiro, empurrando-o contra a parede.
– Você fi-fi… fi-ficaí!
– O porteiro, sem saber do que se tratava, reagiu agressivo:
– Fico aqui por quê, pô?
Os dois passaram a discutir na frente do meu carro. Eliane sugeriu que déssemos marcha à ré, aproveitando a distração do ladrão, e fôssemos chamar a PM.
– Negativo – respondi. – Venho me preparando há anos para este momento. Agora quero saber como vai acabar.
-Que loucura!Quer dizer que você quer ser assaltado?
– Quero. Você não sabe que tenho um problema de rejeição com relação a assaltos?Se nós sairmos daqui, quem vai ser assaltado é o porteiro. Ele não vai me roubar a cena. Este assalto é meu!
Recuperamos a tranqüilidade e voltamos a conversar como se estivéssemos parados no Drive-In. À nossa frente, menos de um metro, o porteiro e o assaltante continuavam num bate-boca como se discutissem a Constituinte.
– Fi-ficaí encostado na pa-pa … pa-pa … . pa-rede, que eu tô-tô … mandando!
– Qualé, cara! –retrucou o porteiro. – Quem é você pra mandar em mim?
Botei o farol alto em cima dos dois para ver melhor a cena.
Quando meu assaltante revelou sua atividade, nem o porteiro acreditou. Sorriu com o canto do lábio naquela expressão de descrença. Aí, juro, o assaltante teve uma reação inesperada: virou-se para mim e pediu minha confirmação.
– So-Sou ou não so-sou?
Pedi licença a Eliane, interrompi a conversa, botei a cabeça para fora do carro e falei com o porteiro:
-É isso aí. Ele é um assaltante! (Meu assaltante, pensei. )
O ladrão levantou a fralda da camisa, sempre desajeitado, e mostrou o “documento” na cintura. O porteiro mudou de cor e se jogou de costas, braços abertos contra a parede. O assaltante tornou a empunhar a arma e voltou à minha janela com uma pergunta que contando parece mentira.
– Onde é que nó-nó… nó nós estávamos?
– Bem, se não me engano, falávamos sobre os problemas da Serra Pelada.
– De… o quê?
– Ouro!Toma logo minha pulseira – disse Eliane, nervosa, querendo acabar com aquilo.
No momento em que o assaltante ia metendo a mão pela janela, parou um Fusca ao meu lado, cheio de gatões e gatinhas, buzinado para alguém no prédio. O assaltante recuou o braço, assustado com aquela presença inesperada. Assustou-se mais ainda com as cabeças que apareceram nas janelas. Um pouco apertado entre os dois carros, fez um gesto brusco e saiu correndo ladeira abaixo. Antes, ainda pude ouvi-lo reclamar: “Pronto, estragou tudo!”. No gesto, esbarrou a mão no espelho retrovisor externo e deixou cair a arma. Apanhei-a e levei-a para casa, sem saber se ficava triste ou alegre com o resultado da experiência. Meu primeiro assalto foi mais proveitoso do que poderia imaginar: rendeu uma crônica e um 38. Se é que foi um assalto. Como se chama o delito penal quando o assaltado sai no lucro?

NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática 1997, p. 82. Coleção Para Gostar de Ler, vol. 15.

Luís Fernando Veríssimo – Apontamentos para uma história de horror. Ou um novelão.

Uma mulher – trinta e quatro, trinta e cinco anos, solteira, tímida, poucos amigos, morando sozinha – está um dia olhando os novos lançamentos numa livraria, pois seu maior prazer é a leitura, quando sente uma mão no seu braço e ouve uma voz de homem que diz:- Vamos?
Ela vira-se, já pronta para repelir o homem rispidamente, co­mo faz com todos que ousam importuná-la, quando nota que o homem é cego. Fica sem saber o que dizer. O homem estranha o silêncio, aperta o seu braço e diz:
– Isabel?
E ela, sem saber por que, mas com a intuição de que a sua vida a partir daquele instante será outra, o coração batendo, diz: – Sim…- Vamos?
E ela, o coração batendo:
– Vamos.
O homem é mais moço do que ela. Bonito. Bem vestido. Bem cuidado. Deixa-se guiar por ela, fazendo perguntas sem muito in­teresse. Por que estão pegando um táxi e não o carro? Ela diz que perdeu a chave do carro na rua. Ele sorri e diz “Você…” Quando chegam no apartamento dela ele pergunta onde estão. Ela diz “Em casa…” e ele diz “Estranho…” Mas não diz mais nada. Nem quan­do ela faz ele sentar numa poltrona que certamente não é a fa­vorita dele. Nem quando tira os seus sapatos, e afaga sua cabeça, e pergunta se ele quer alguma coisa antes do jantar. Só quando ela pergunta o que ele quer que ela faça para o jantar, diz:
– Você vai cozinhar?
-Vou.
– E a cozinheira?
– Despedi.
Ele parece não se interessar muito. Perde-se dentro do aparta­mento à procura do quarto, pois quer trocar de roupa. Ela o guia de volta à cadeira. Diz que é para ele ficar quieto, deixar tudo com ela. E para si mesma diz: amanhã preciso comprar umas roupas pra ele. Ela capricha no jantar, que ele come em silêncio.
Ele não comenta que a voz dela está diferente. Não acha mais nada estranho. Só na cama, quando ela o abraça, e guia a mão dele pelo seu corpo, ele começa a dizer:
– Sabe…
Mas ela cobre a boca dele com a sua.
Era uma mulher solitária, nunca tivera ninguém para cuidar. E agora tinha um homem em casa. Um homem que precisava dela, que não podia fazer nada sem ela. Um homem que não podia ver o seu rosto.
Cuidava dele, tinha certeza, melhor do que a mulher de ver­dade. Dava banho nele. Vestia-o com a roupa que ela escolhia e comprava. E à noite, na cama, amava-o como, tinha certeza, ne­nhuma mulher jamais o amara.
Ela se perguntava se ele realmente acreditava que ela era a mulher dele. A voz. Não desconfiava da voz? E da súbita mudan­ça de vida? O desaparecimento de amigos, do resto da família… Mas como saber que vida ele levava com a outra?
Convenceu-se que ele sabia que se enganara, aquele dia, na li­vraria, sabia que estava vivendo com outra mulher, mas que prefe­ria assim. Até que uma noite, na cama, depois de se amarem como todas as noites, ele de repente perguntou:
– Você é mesmo a Isabel?
Ela hesitou. Se dissesse “não” podia ouvir dele a frase “Eu sa­bia”, e a confissão que preferia assim, e que a amava apesar dela ter-se passado pela outra, e mantê-lo preso naquele apartamento. Mas também podia perdê-l o para sempre. Não arriscou. Respondeu:
– Claro que sou. Que pergunta!
Na manhã seguinte, quando ela acordou, ele não estava do seu lado na cama. Ela o encontrou na cozinha, morto. Tinha corta­do os pulsos com a faca do pão.
Foi difícil explicar por que ela sabia tão pouco daquele ho­mem que vivia com ela e se matara na sua cozinha. Só sabia mes­mo o que estava na sua carteira. Foi a própria polícia que, dias de­pois, contou a ela tudo que ela não sabia. O homem ficara cego ainda em criança. Perdera os pais. Vivia sozinho com a irmã.
– E a mulher – corrigiu ela, ainda zonza. Não conseguia pen­sar direito desde que descobrira o corpo na cozinha.
– Não, não. Nunca casou. Viviam sozinhos, ele e a irmã. Ele tinha desaparecido. Se perdeu dela numa livraria e a irmã
estava preocupadíssima. -Irmã?
– É. Isabel.

200 obras essenciais da literatura brasileira e mundial

O site Educar Para Crescer publicou em 2011 duas ótimas listas para quem está interessado em mergulhar no universo dos clássicos e não sabe por onde começar. Trata-se de “100 livros essenciais da literatura brasileira“, de Hélio Ponciano e Marcelo Pen, e “100 livros essenciais da literatura mundial“, de Almir de Freitas. Esta última tem uma organização um pouco melhor, já que permite acesso a uma sinopse de cada obra sem ter que abrir uma nova página [clicando-se no nome do livro, ela aparece logo abaixo]. A qualidade da lista nacional, entretanto, ameniza essa pequena desvantagem técnica.

Que livros te interessaram dessas listas? Quais indicarias a leitores do ensino médio e, o principal, por quê? Aguardo tuas respostas!

 

Paul Auster – No País das Últimas Coisas

Uma pausa na minha leitura e na zoeira eleitoral para dizer a vocês que adquiram ou peguem emprestado o livro “No País das Últimas Coisas” (1987), do americano Paul Auster. É uma distopia que se passa num planeta Terra pós-apocalíptico, com todas as mazelas que normalmente rolam nesse tipo de narrativa, mas com uma atenção à linguagem muito peculiar. O trecho abaixo é um bem óbvio – mas não menos lindo – exemplo disso. Acabei de começar e tô empolgadíssimo. Para quem gosta de literatura distópica, recomendo também as obras listadas no fim do artigo. Divirtam-se.

"No País das Últimas Coisas", de Paul Auster

Algumas obras de “Literatura distópica”

“Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.
“1984”, de George Orwell.
“Neuromancer”, de Willian Gibson.
“Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley.
“Laranja Mecânica, de Anthony Burguess
“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury.
“Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins.

 

Henry James – Os papéis de Aspern

Os_papeis_de_Aspern Depois de ter lido o clássico “A volta do parafuso” (1898) há muitos anos, eis que uma daquelas [sempre] despretensiosas excursões vespertinas aos sebos do centro da cidade me colocou às mãos um conservado [e raramente disponível nos alfarrabistas locais] exemplar de “Os papéis de Aspern” (1888), pequeno romance [novela, para alguns] do escritor norte-americano [naturalizado britânico] Henry James (15/abr/1843 — 28/fev/1916). Há muito tempo eu andava agarrado ou à literatura ultra-contemporânea [a daqueles autores que te cutucam no Facebook, por exemplo], ou às obras listadas nos vestibulares [que raramente surpreendem]. O advento das férias e o fato de que eu havia ido de ônibus ao centro naquele dia [e, portanto, não precisaria me preocupar com o valor do estacionamento] me fizeram aproveitar o frescor do ar condicionado de uma simpática padaria para começar de imediato a leitura. De sexta passada, dia da aquisição, até hoje, noite de domingo, foram modestas 87 páginas. Nada de grandes acontecimentos, nada de hiperbólico ou quixotesco: apenas um narrador em primeira pessoa não apenas descrevendo com elegância a Veneza do fim do século XIX, mas aguçando progressivamente a curiosidade do leitor em torno da trama. O tal narrador, um editor fanático por um poeta há muito ido, Jeffrey Aspern, faz-se inquilino de Juliana Bordereau, agora uma decrépita anciã, mas que foi amante [e musa] de Jeffrey. Seu plano é tomar posse de cartas e escritos inéditos do poeta que ele está convencido de estarem em poder da senhora. Mas aí é que começa a treta, sobre a qual não direi mais nada.
Henry James, que eu [elogiosamente, diga-se] chamo de “o Machado de Assis americano” [pois além de ter escrito MUITA coisa em muitos gêneros, também era um arauto do Realismo], era um maestro da narração, e “Os papéis de Aspern”, uma de suas mais emblemáticas sinfonias.
Só pra constar, paguei cinco reais. #ShoraRekalk


Atualização [14/12/2015]: O pessoal da editora Penalux publicou uma nova tradução desse romance, que pode ser adquirida neste link. Uma amostra da edição pode ser lida clicando-se aqui.

Lista de obras literárias para o ensino médio 2013

Biblioteca Mario de Andrade
Biblioteca Mario de Andrade (Photo credit: Blog do Mílton Jung)

Andei às voltas com minha dissertação nos últimos meses e pouco tempo tive para lapidar uma lista “ideal” que há tempos vem me perseguindo nas minhas ideias, mas finalmente comecei a esboçá-la. O plano é criar blocos temáticos [literatura e ______ (relações de gênero/sexualidade, violência, drogas, amor, tecnologia, games, mitologia etc)] e escolher as obras adequadas a cada tema. Aí embaixo está um primeiro rascunho de lista, ainda sem nenhuma associação com temas. Não coloquei nada para os 3º anos porque costumo utilizar a lista de obras indicada par o vestibular local.

Aceito sugestões!

TÍTULO AUTOR SÉRIE
Édipo Rei Sófocles 1
Assassin’s Creed – Renascença Oliver Bowden 1
Billie Holiday Sylvia Fox 1
Maus Art Spiegelman 1
Caminhos errantes da liberdade Jorge Miguel 1
A revolução dos bichos George Orwell 1
Antologia poética Fernando Pessoa 1
Capão Pecado Ferréz 1
Comédias Martins Pena 2
Judas, O Obscuro Thomas Hardy 2
A metamorfose Franz Kafka 2
O Alienista Machado de Assis 2
Um jogador Dostoiévski 2
Admirável Mundo Novo Aldous Huxley 1
Paisagem com dromedário Carola Saavedra 2
O voo da guará vermelha Maria Valéria Rezende 1
O último amigo Tahar Bem Jelloun 2
Venho de um país obscuro Miguel Sanches Neto 2
Macunaíma Mário de Andrade 2

Ignácio de Loyola Brandão – A anã pré-fabricada e seu pai, o ambicioso marretador

Era uma vez uma anã pré-fabricada. Tinha cinquenta centímetros de altura. Os pais eram pessoas normais. A anã era anã porque desde pequena o pai batia com a marreta na cabeça dela. Ele batia, e dizia: “Diminua, filhinha”. O sonho do pai era ter uma filha que trabalhasse no circo. E se ele conseguisse uma anã, o circo aceitaria.

Assim, a menina não cresceu. Tinha as pernas tortas, a cabeça plana como mesa, os olhos esbugalhados. Um globo, com as marretadas, chegara a sair. E deste modo o olho andava dependurado pelos nervos. Com o olho caído, a menina enxergava o chão – e enxergava bem. Por isso, nunca deu topadas.
A menina diminuiu, entrou para a escola, se diplomou. E o pai esperando que o circo viesse para a cidade. A anã teve poucos namorados na sua vida. Os moços da cidade não gostavam de sua cabeça plana como mesa. Um dos namorados foi um mudo; o outro, um cego.
Com o passar do tempo, o pai ia ensinando à filha anã os truques do circo: andar na corda bamba, atirar facas, equilibrar pratos na ponta de varas, equilibrar bolas, andar sobre roletes, fazer exercícios na barra, pular através de um arco de fogo, cair ao chão (fazendo graça) sem se machucar, ficar de pé no dorso de cavalos.
De vez em quando, o pai emprestava a filha ao padre, por causa da quermesse. Ela substituía o coelho nos jogos de sorteio. Havia uma porção de casinhas dispostas em círculo. Cada casinha tinha um número. A um sinal do quermesseiro, a menina corria e entrava na casinha. Quem tivesse aquele número ganhava a prenda. A anã não gostava da quermesse porque se cansava muito e também porque no dia seguinte ficava triste, com o pessoal que tinha perdido. Eles a seguiam pela rua, gritando: “Aí, baixinha,…, por que não entrou no meu número?”.
Um dia, o circo chegou à cidade, com lona colorida, um elefante inteirinho rosa, uma onça pintada, palhaços, cartazes e uma trapezista gorda que vivia caindo na rede. O pai mandou fazer para a anã um vestido de cetim vermelho, com cinto verde. Comprou um sapato preto e meias três-quartos. Levou a filha ao circo. Ela mostrou tudo o que sabia, mas o diretor disse que faziam aquilo: andavam no arame, na corda bamba, equilibravam coisas, pulavam através de arcos de fogo, andavam no dorso de cavalos. Só havia uma vaga, mas esta ele não queria dar para a menina, porque estava achando a anã muito bonitinha. Mas o pai insistiu e a anã também. Ela estava cansada da vida da cidadezinha, onde o povo só via televisão o tempo inteiro. E o dono do circo disse que o lugar era dela: a anã seria comida pelo leão, porque andava uma falta de carne tremenda. E, assim, no dia seguinte, às seis horas, a menina tomou banho, passou perfume Royal Briar, jantou, colocou seu vestido vermelho, de cinto verde, uma rosa na cabeça e partiu contente para o emprego.

IN: BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cabeças de segunda-feira. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1983.

Edmodo, Feeds RSS e outros bichos

Neste ano iniciaremos em nossa disciplina o uso do Edmodo para a postagem de trabalhos. O visual é bem parecido com o do Facebook, ou seja, é bastante intuitivo e bem simples de acompanhar. As instruções para cadastro e os códigos de grupo [necessários no cadastro] estão neste link.

Outra coisa legal para quem tem que acompanhar vários blogs ao mesmo tempo [que é o caso de vocês com os blogs dos professores] é usar feeds RSS. O que é? Como funciona? O que ganho com isso? Tudo está respondido neste link.

Como fazer uma redação nota 10

O artigo abaixo, parte integrante do livro (Sobre)screvendo a Redação de Vestibular, é uma reflexão sobre a redação de vestibular, mas a abordagem utilizada o torna útil também para quem ainda não está às vésperas da tão esperada [e indevidamente temida] prova. Seguem a seguir o resumo do artigo e o link para download.

Resumo: O presente artigo discute a possibilidade de se produzirem textos de qualidade em situação de concurso vestibular. Para tanto, utilizando diferentes ferramentas, que contemplam aspectos lingüísticos, temáticos, pragmáticos, textuais e discursivos, analisamos dois textos autênticos, produzidos em situação de prova e avaliados com nota máxima. São enfatizados quesitos relevantes para a constituição de um texto autoral, que se situe para além das fórmulas/fôrmas que tantas vezes desviam o foco de atenção de professores (bem intencionados) e alunos (bem ansiosos), seja pelo compromisso de dar conta de uma estrutura pré-estabelecida, seja pelo excesso de preocupação com a correção gramatical em detrimento da organização e pertinência das idéias.

Palavras-chave: Redação de vestibular. Qualidades do texto. Criatividade e autoria.

SMITH, Marisa Magnus – Como se faz uma redação nota 10

Manoel de Barros – Matéria de Poesia (lido por Sandro Brincher)

Do que trata a poesia? Qual seu foco? De que ela se ocupa? Há infinitas respostas para essas perguntas, mas uma das mais bonitas é a do poeta Manoel de Barros, cuja obra está centrada justamente nas coisas mais pequenas, inúteis e imperceptíveis de nossa existência. O arquivo de áudio abaixo é minha leitura do poema “Matéria de Poesia”, no qual ele apresenta sua “teoria” sobre o(s) objeto(s) da poesia.

Manoel de Barros – Matéria de Poesia (lido por Brincher)

A Antônio Houaiss (1974)

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
– sapatos, adjetivos –
tem muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora

IN: BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1990.