Luís Fernando Veríssimo – Apontamentos para uma história de horror. Ou um novelão.

Uma mulher – trinta e quatro, trinta e cinco anos, solteira, tímida, poucos amigos, morando sozinha – está um dia olhando os novos lançamentos numa livraria, pois seu maior prazer é a leitura, quando sente uma mão no seu braço e ouve uma voz de homem que diz:- Vamos?
Ela vira-se, já pronta para repelir o homem rispidamente, co­mo faz com todos que ousam importuná-la, quando nota que o homem é cego. Fica sem saber o que dizer. O homem estranha o silêncio, aperta o seu braço e diz:
– Isabel?
E ela, sem saber por que, mas com a intuição de que a sua vida a partir daquele instante será outra, o coração batendo, diz: – Sim…- Vamos?
E ela, o coração batendo:
– Vamos.
O homem é mais moço do que ela. Bonito. Bem vestido. Bem cuidado. Deixa-se guiar por ela, fazendo perguntas sem muito in­teresse. Por que estão pegando um táxi e não o carro? Ela diz que perdeu a chave do carro na rua. Ele sorri e diz “Você…” Quando chegam no apartamento dela ele pergunta onde estão. Ela diz “Em casa…” e ele diz “Estranho…” Mas não diz mais nada. Nem quan­do ela faz ele sentar numa poltrona que certamente não é a fa­vorita dele. Nem quando tira os seus sapatos, e afaga sua cabeça, e pergunta se ele quer alguma coisa antes do jantar. Só quando ela pergunta o que ele quer que ela faça para o jantar, diz:
– Você vai cozinhar?
-Vou.
– E a cozinheira?
– Despedi.
Ele parece não se interessar muito. Perde-se dentro do aparta­mento à procura do quarto, pois quer trocar de roupa. Ela o guia de volta à cadeira. Diz que é para ele ficar quieto, deixar tudo com ela. E para si mesma diz: amanhã preciso comprar umas roupas pra ele. Ela capricha no jantar, que ele come em silêncio.
Ele não comenta que a voz dela está diferente. Não acha mais nada estranho. Só na cama, quando ela o abraça, e guia a mão dele pelo seu corpo, ele começa a dizer:
– Sabe…
Mas ela cobre a boca dele com a sua.
Era uma mulher solitária, nunca tivera ninguém para cuidar. E agora tinha um homem em casa. Um homem que precisava dela, que não podia fazer nada sem ela. Um homem que não podia ver o seu rosto.
Cuidava dele, tinha certeza, melhor do que a mulher de ver­dade. Dava banho nele. Vestia-o com a roupa que ela escolhia e comprava. E à noite, na cama, amava-o como, tinha certeza, ne­nhuma mulher jamais o amara.
Ela se perguntava se ele realmente acreditava que ela era a mulher dele. A voz. Não desconfiava da voz? E da súbita mudan­ça de vida? O desaparecimento de amigos, do resto da família… Mas como saber que vida ele levava com a outra?
Convenceu-se que ele sabia que se enganara, aquele dia, na li­vraria, sabia que estava vivendo com outra mulher, mas que prefe­ria assim. Até que uma noite, na cama, depois de se amarem como todas as noites, ele de repente perguntou:
– Você é mesmo a Isabel?
Ela hesitou. Se dissesse “não” podia ouvir dele a frase “Eu sa­bia”, e a confissão que preferia assim, e que a amava apesar dela ter-se passado pela outra, e mantê-lo preso naquele apartamento. Mas também podia perdê-l o para sempre. Não arriscou. Respondeu:
– Claro que sou. Que pergunta!
Na manhã seguinte, quando ela acordou, ele não estava do seu lado na cama. Ela o encontrou na cozinha, morto. Tinha corta­do os pulsos com a faca do pão.
Foi difícil explicar por que ela sabia tão pouco daquele ho­mem que vivia com ela e se matara na sua cozinha. Só sabia mes­mo o que estava na sua carteira. Foi a própria polícia que, dias de­pois, contou a ela tudo que ela não sabia. O homem ficara cego ainda em criança. Perdera os pais. Vivia sozinho com a irmã.
– E a mulher – corrigiu ela, ainda zonza. Não conseguia pen­sar direito desde que descobrira o corpo na cozinha.
– Não, não. Nunca casou. Viviam sozinhos, ele e a irmã. Ele tinha desaparecido. Se perdeu dela numa livraria e a irmã
estava preocupadíssima. -Irmã?
– É. Isabel.

Paul Auster – No País das Últimas Coisas

Uma pausa na minha leitura e na zoeira eleitoral para dizer a vocês que adquiram ou peguem emprestado o livro “No País das Últimas Coisas” (1987), do americano Paul Auster. É uma distopia que se passa num planeta Terra pós-apocalíptico, com todas as mazelas que normalmente rolam nesse tipo de narrativa, mas com uma atenção à linguagem muito peculiar. O trecho abaixo é um bem óbvio – mas não menos lindo – exemplo disso. Acabei de começar e tô empolgadíssimo. Para quem gosta de literatura distópica, recomendo também as obras listadas no fim do artigo. Divirtam-se.

"No País das Últimas Coisas", de Paul Auster

Algumas obras de “Literatura distópica”

“Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.
“1984”, de George Orwell.
“Neuromancer”, de Willian Gibson.
“Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley.
“Laranja Mecânica, de Anthony Burguess
“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury.
“Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins.

 

Henry James – Os papéis de Aspern

Os_papeis_de_Aspern Depois de ter lido o clássico “A volta do parafuso” (1898) há muitos anos, eis que uma daquelas [sempre] despretensiosas excursões vespertinas aos sebos do centro da cidade me colocou às mãos um conservado [e raramente disponível nos alfarrabistas locais] exemplar de “Os papéis de Aspern” (1888), pequeno romance [novela, para alguns] do escritor norte-americano [naturalizado britânico] Henry James (15/abr/1843 — 28/fev/1916). Há muito tempo eu andava agarrado ou à literatura ultra-contemporânea [a daqueles autores que te cutucam no Facebook, por exemplo], ou às obras listadas nos vestibulares [que raramente surpreendem]. O advento das férias e o fato de que eu havia ido de ônibus ao centro naquele dia [e, portanto, não precisaria me preocupar com o valor do estacionamento] me fizeram aproveitar o frescor do ar condicionado de uma simpática padaria para começar de imediato a leitura. De sexta passada, dia da aquisição, até hoje, noite de domingo, foram modestas 87 páginas. Nada de grandes acontecimentos, nada de hiperbólico ou quixotesco: apenas um narrador em primeira pessoa não apenas descrevendo com elegância a Veneza do fim do século XIX, mas aguçando progressivamente a curiosidade do leitor em torno da trama. O tal narrador, um editor fanático por um poeta há muito ido, Jeffrey Aspern, faz-se inquilino de Juliana Bordereau, agora uma decrépita anciã, mas que foi amante [e musa] de Jeffrey. Seu plano é tomar posse de cartas e escritos inéditos do poeta que ele está convencido de estarem em poder da senhora. Mas aí é que começa a treta, sobre a qual não direi mais nada.
Henry James, que eu [elogiosamente, diga-se] chamo de “o Machado de Assis americano” [pois além de ter escrito MUITA coisa em muitos gêneros, também era um arauto do Realismo], era um maestro da narração, e “Os papéis de Aspern”, uma de suas mais emblemáticas sinfonias.
Só pra constar, paguei cinco reais. #ShoraRekalk


Atualização [14/12/2015]: O pessoal da editora Penalux publicou uma nova tradução desse romance, que pode ser adquirida neste link. Uma amostra da edição pode ser lida clicando-se aqui.

Ignácio de Loyola Brandão – A anã pré-fabricada e seu pai, o ambicioso marretador

Era uma vez uma anã pré-fabricada. Tinha cinquenta centímetros de altura. Os pais eram pessoas normais. A anã era anã porque desde pequena o pai batia com a marreta na cabeça dela. Ele batia, e dizia: “Diminua, filhinha”. O sonho do pai era ter uma filha que trabalhasse no circo. E se ele conseguisse uma anã, o circo aceitaria.

Assim, a menina não cresceu. Tinha as pernas tortas, a cabeça plana como mesa, os olhos esbugalhados. Um globo, com as marretadas, chegara a sair. E deste modo o olho andava dependurado pelos nervos. Com o olho caído, a menina enxergava o chão – e enxergava bem. Por isso, nunca deu topadas.
A menina diminuiu, entrou para a escola, se diplomou. E o pai esperando que o circo viesse para a cidade. A anã teve poucos namorados na sua vida. Os moços da cidade não gostavam de sua cabeça plana como mesa. Um dos namorados foi um mudo; o outro, um cego.
Com o passar do tempo, o pai ia ensinando à filha anã os truques do circo: andar na corda bamba, atirar facas, equilibrar pratos na ponta de varas, equilibrar bolas, andar sobre roletes, fazer exercícios na barra, pular através de um arco de fogo, cair ao chão (fazendo graça) sem se machucar, ficar de pé no dorso de cavalos.
De vez em quando, o pai emprestava a filha ao padre, por causa da quermesse. Ela substituía o coelho nos jogos de sorteio. Havia uma porção de casinhas dispostas em círculo. Cada casinha tinha um número. A um sinal do quermesseiro, a menina corria e entrava na casinha. Quem tivesse aquele número ganhava a prenda. A anã não gostava da quermesse porque se cansava muito e também porque no dia seguinte ficava triste, com o pessoal que tinha perdido. Eles a seguiam pela rua, gritando: “Aí, baixinha,…, por que não entrou no meu número?”.
Um dia, o circo chegou à cidade, com lona colorida, um elefante inteirinho rosa, uma onça pintada, palhaços, cartazes e uma trapezista gorda que vivia caindo na rede. O pai mandou fazer para a anã um vestido de cetim vermelho, com cinto verde. Comprou um sapato preto e meias três-quartos. Levou a filha ao circo. Ela mostrou tudo o que sabia, mas o diretor disse que faziam aquilo: andavam no arame, na corda bamba, equilibravam coisas, pulavam através de arcos de fogo, andavam no dorso de cavalos. Só havia uma vaga, mas esta ele não queria dar para a menina, porque estava achando a anã muito bonitinha. Mas o pai insistiu e a anã também. Ela estava cansada da vida da cidadezinha, onde o povo só via televisão o tempo inteiro. E o dono do circo disse que o lugar era dela: a anã seria comida pelo leão, porque andava uma falta de carne tremenda. E, assim, no dia seguinte, às seis horas, a menina tomou banho, passou perfume Royal Briar, jantou, colocou seu vestido vermelho, de cinto verde, uma rosa na cabeça e partiu contente para o emprego.

IN: BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cabeças de segunda-feira. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1983.

Roteiro para trabalho de Literatura sobre livros do vestibular

Autor: breve informação biográfica;
Contexto histórico da publicação: o que estava acontecendo na literatura, na arte e no mundo no momento da publicação do livro?
Contexto histórico do enredo: em que tempo a história ocorre? Há alguma relação entre esse tempo e o da publicação?
Enredo: quais os acontecimentos principais do livro em questão? De que modo esses acontecimentos desencadeiam as ações das personagens principais?
Linguagem: a linguagem é formal, coloquial, obscura, clara, simples, complexa? Percebe-se algum sotaque ou modalidade do Português? Isso parece intencional? As personagens se expressam de forma diferente com relação à linguagem?
Questões: elaborar duas questões [somatória], nos moldes da UFSC, sobre o livro. Cada questão deve ter 6 alternativas. Elas devem contemplar tanto questões do enredo quanto de linguagem.

Manoel de Barros – Matéria de Poesia (lido por Sandro Brincher)

Do que trata a poesia? Qual seu foco? De que ela se ocupa? Há infinitas respostas para essas perguntas, mas uma das mais bonitas é a do poeta Manoel de Barros, cuja obra está centrada justamente nas coisas mais pequenas, inúteis e imperceptíveis de nossa existência. O arquivo de áudio abaixo é minha leitura do poema “Matéria de Poesia”, no qual ele apresenta sua “teoria” sobre o(s) objeto(s) da poesia.

Manoel de Barros – Matéria de Poesia (lido por Brincher)

A Antônio Houaiss (1974)

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
– sapatos, adjetivos –
tem muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora

IN: BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1990.

Marize Castro – Uma mulher que se abre

Em prosa poética, Marize Castro explica o que
acontece quando uma mulher se abre.

Quando uma mulher se abre o que há de mais solitário se alarga. Espantalhos de dor se mostram e se decompõem. Flocos de agonia se aproximam. Crescem perdas. Voam conchas.
Uma mulher que se abre é uma mulher mergulhada em anáguas e sendas. Saltando sobre a luz. Deram-lhe lanças e um falso espelho para enganar as feridas.
Quebrada, ela conduz corações ao túmulo. Esperando que uma nova morte traga-lhe nova grinalda e novo véu.
Em surdina, uma mulher que se abre deseja o esquecimento e a maternidade. Quer parir, dormir, trepar. Morte à memória!
– O mundo não corrompe quem habita os subterrâneos.
Disse-lhe um livro com o sol no ventre.
O extravio de uma mulher que se abre é um deslumbre. Uma significação doce e mórbida. Possui a beleza e está carregado de hóstias e sepulturas.
Moças e rapazes, caindo em abismos, sustentam essa mulher aberta. Beijam-lhe o útero exposto.
Afogado em seus cabelos, ela se arqueia na esperança que o amor, quando novamente acontecer, não traga algemas.
Uma mulher que se abre é pedra, cratera, rio, relíquia.
Traz na língua o perdão e suas chamas.

Fonte: Diário de Natal; edição de 18 de julho de 1999.

Jostein Gaarder – O Mundo de Sofia

O Mundo de Sofia é um romance do norueguês Jostein Gaarder publicado em 1991. O livro foi escrito originalmente na língua do autor, mas já foi traduzido para mais de 50 idiomas. A primeira edição em português saiu em 1995.

O romance conta a história de uma adolescente que começa a receber misteriosas cartas de um filósofo, Alberto, com quem começa ter aulas sobre diversos temas relacionados à história da filosofia. Entretanto, há outros elementos, principalmente as estratégias narrativas (que vão desde a parte “detetivesca” da história até o final surpreendente do romance), que tornam esta uma leitura essencial para o ensino médio.